Pare de se blindar na hora de viajar

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Passagem comprada e embarque feito são sinônimo de expectativa: dali algumas horas, você estará em um novo destino, fora da sua rotina. Visitará um lugar onde tudo tem cara de novidade e as descobertas estão em cada esquina. O friozinho na barriga e aquele sorriso de canto de boca são quase inevitáveis, né? É porque viajar é um jeito de sair do seu mundinho. Abandonar um pouco a rotina, o escritório, o mesmo caminho para casa todos os dias.

Mas às vezes, é claro, é difícil viajar e se soltar em um lugar novo — a gente não sabe exatamente se algumas ruas são tão seguras assim, se as pessoas são exatamente confiáveis. Especialmente quando se viaja só, é fácil de ouvir aquela voz baixinha na consciência, que diz que algo pode acontecer e ninguém vai poder te ajudar porque ninguém à sua volta te conhece. É fácil se blindar. É como se a gente fosse pra outro destino dentro da nossa própria bolhinha existencial sem nunca estourá-la. Levamos nossos receios junto com a gente e nem sempre nos permitimos viver uma experiência completa nos lugares onde pisamos. Precisa mesmo ser assim?

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Marrocos, Marrakech | Foto: Alessandra Fratus | topensandoemviajar.com

É claro que a sensação imediata quando a gente se solta em um lugar é medo — a gente não sabe direito que ônibus pegar, vai pro lado errado da rua, às vezes cai num lugar onde estranham nosso sotaque (ou, pra ir mais longe, não entendem nossa língua). Mas é do outro lado desses obstáculos que se encontram as maiores recompensas ao viajar.

Quando eu viajei para lugares muito diferentes da minha realidade, percebi que é muito mais fácil se deixar levar pelas dicas que a gente encontra na internet: tal lugar é meio perigoso, tal região tem muito roubo, assédio, é pouco interessante porque não tem points turísticos, e por aí vai. Isso faz a gente se esquecer de que a vida está acontecendo em todos os lugares, cada um deles à sua maneira. É nessa vida, nessa rotina e nas pessoas que vivem aquele mundo diariamente que a gente muda. Olhar para o mundo dos outros enquanto ele faz parte do nosso nos transforma porque nos faz entender que outras realidades são possíveis.

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Myanmar | Foto: Alessandra Fratus | topensandoemviajar.com
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Myanmar | Foto: Alessandra Fratus | topensandoemviajar.com

No Brasil, você vai ouvir mil vezes sobre como drogas e prostituição são males da humanidade. Se você viajar para Amsterdam, porém, você pode consumir maconha legalmente e passear por ruas onde prostitutas alugam portinhas para vender seu corpo a quem se interessar — e a vida acontece nesses dois lugares. Existem rotinas quase diametralmente opostas, mas que não são excludentes. E, por isso, ampliam o leque do que consideramos realidades e possibilidades de mundo.

Mais do que o dia a dia de uma cidade, as pessoas são um tesouro mais valioso do que qualquer selfie em um cartão postal: ouvir as histórias e começar a colecioná-las cria, dentro de nós, um catálogo de lições de vida, ao qual sempre poderemos recorrer para aplicar aprendizados no nosso dia a dia. Um exemplo: quando visitei a Bósnia e Herzegovina em 2016, perguntei à dona do hostel onde eu estava se ela havia vivido no país durante a guerra. Ela disse que sim. “Será que a gente poderia se sentar alguma hora para você me falar sobre o que testemunhou?”, perguntei, receosa de dizer aquelas palavras (percebam que eu já estava querendo bem enfiar na bolhinha da minha própria existência de novo, com medo do desconforto de qualquer interação humana). Não deu outra: quando anoiteceu, ficamos duas horas conversando. Foi uma das aulas de História mais inesquecíveis da minha vida. Nunca vou me esquecer daquela semana — eu perdi o apetite por dias e andava pelas ruas de Sarajevo querendo chorar, mas aceitei pagar esse preço. Meu apetite voltou, mas a lição nunca irá embora.

Em Budapeste, fui à estação de trem por dias seguidos para ouvir histórias de refugiados. De médicos, professores, advogados e contadores até estudantes, cada um compartilhou comigo suas angústias ao abandonar a casa, o carro na garagem, o trabalho e o resto da família. Foi uma experiência tão intensa que só depois de dias inteiros indo à mesma estação de trem que eu me toquei: estava em um lugar de arquitetura maravilhosa, de cair o queixo mesmo. Mas, com tantas histórias à minha volta, que me tiravam tão constantemente da zona de conforto, a beleza de um prédio pouco importava: eu queria saber de gente.

As marcas deixadas pelas pessoas são o verdadeiro souvenir de cada viagem. Cada interação é uma oportunidade para entender o outro e tornar-se mais humano. Quando sinto algum receio de pedir ajuda ou de puxar conversa, procuro me lembrar do conselho que uma amiga me deu uma vez: “Se você ajudaria um estranho, por que sente acha que um estranho não te ajudaria?”

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Brasiliense, turismóloga, blogueira, mulher medicina, admiradora das brincadeiras populares e dos simbolismos étnicos. Sol e lua em sagitário, adora banana, cachoeiras, rios e mar. Não viaja sem seus óleos essenciais, não recusa um convite para dançar e acredita que o abraço cura.

4 COMENTÁRIOS

  1. Oi querida.
    Tenho uma história pra te contar. Minha pouco convencional vida. Estou praticando para de falar da vida dos outros e falando da minha própria rs. Brincadeira.
    Sou carioca, moro e amo Belo Horizonte. Sou fissurada por cafeterias, faço parte de grupo de danças folclóricas do Brasil e sou personal training de bebês. Os ensino a sobreviver na água.
    Gostei muito da forma como coloca suas reportagens e acho que seria fantástico fazer parte disso.

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